Este blog destina-se a inserir algumas informações que possam ser úteis e, principalmente, que possam inspirá-los a algo interessante que fuja da mesmice. Atualmente, Mestranda em Divulgação Científica e Cultural, no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo-LABJOR/UNICAMP, venho me interessando pelo funcionamento do discurso em diversas plataformas midiáticas, na constituição, formulação e circulação desses discursos.
Para falar da obsessão por um padrão de beleza – ou mesmo de
vida - ideal, queridas meninas, hoje eu
começo minha reflexão em torno de dois contos. O primeiro é de um autor
guatemalteco, do século XX, um dos mais importantes da literatura
latino-americana, e o mestre maior do conto breve no panorama mundial. Amante
da narrativa irônica e bem-humorada, quase sempre curta, revelou-se um crítico
eficaz do comodismo e da subserviência. O segundo é de um autor francês, do
século XVII, considerado o pai da fábula moderna que, ao se referir a esse gênero, dizia : “É uma pintura em que podemos encontrar nosso próprio retrato”.
Ei-los
abaixo:
O rã que queria ser uma autêntica rã
(Augusto Monterroso)
Era
uma vez uma rã que queria ser uma rã autêntica, e que todos os dias se
esforçava para isso. No começo ela comprou um espelho onde se olhava longamente
procurando sua almejada autenticidade.
Algumas
vezes parecia encontrá-la e outras não, de acordo com o humor desse dia e da
hora, até que se cansou disso e guardou o espelho num baú.
Finalmente,
ela pensou que a única maneira de conhecer seu próprio valor estava na opinião
das pessoas, e começou a se pentear e a se vestir e a se despir (quando não lhe
restava nenhum outro recurso) para saber se os outros a aprovavam e reconheciam
que era uma rã autêntica.
Um
dia observou que o que mais admiravam nela era seu corpo, especialmente suas
pernas, de forma que se dedicou a fazer exercícios e a pular para ter ancas
cada vez melhores, e sentia que todos a aplaudiam.
E
assim continuava fazendo esforços até que, disposta a qualquer coisa para
conseguir que a considerassem uma rã autêntica, deixava que lhe arrancassem as
ancas, e os outros as comiam, e ela ainda chegava a ouvir com amargura quando
diziam: que ótima rã, até parece frango.
A rã que queria ser grande como o boi
( J.de La Fontaine)
Certa rã viu um boi e impressionou-se com seu belo porte.
Envergonhada com seu minúsculo tamanho, pretendeu encher-se de ar, até igualar
o tamanho do grande animal, objeto de sua admiração.
Envaidecida, disse as suas companheiras:
- Vejam, irmãs, estou ficando grande? Já igualei meu tamanho
ao do boi?
- Não! - responderam.
- E agora?
- Ainda não.
- Agora, penso que consegui...
- Ainda está muito longe!
A rã, então, foi inflando-se, cada vez mais, até que sua
pele, não mais resistindo, se arrebentou.
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Como não nos remetermos, por meio da “rã”, ao que estamos
presenciando hoje? A necessidade premente de querer ser diferente do que se é, por
não aceitação, por uma autoestima distorcida, fragilizada ou pela busca frenética por
padrões de vida e/ou de beleza
inalcançáveis?
Somos invadidas, caras leitoras, todos os dias por imagens de corpos
esculturais, looks bafônicos, cabelos impecáveis, mulheres lindas, glamorosas,
saudáveis, saradas. Aquelas mulheres-modelos-capas de revista – sim, elas são lindas- não são o retrato da vida real. Elas vivem
disso, ganham dinheiro para parecerem perfeitas. Fora a produção para deixar as
meninas verdadeiras bonecas, cada foto é tratada, manipulada e corrigida. E
quando vemos a foto pensamos: Meu Deus! Como elas são perfeitas!
Imagina ter que estar sempre linda, penteada e nunca mais
poder comer um “podrão” ou um X-tudo super completo na birosca? Se alimentar bem,
ok. Viver em função da dieta e do corpo: furada! Estar bem vestida, ok. Tratar
a beleza como fator mais importante da sua vida: furada! Se cuidar, ok. Fazer
loucura em nome de padrões estéticos: SUPER FURADA!
Ok, meninas, na teoria é muito simples: Basta dizer não a essa
ditadura da beleza e ponto! Mas na prática, lidar com essas “cobranças” pode
ser muito mais difícil do que parece. Como se manter segura e livre do padrão
Angel? Vamos lá!
Devemos ter em mente que a aparência, na escala de
prioridades da vida, não ocupa, ou não deveria ocupar, o primeiro lugar! Adianta estar linda e sem
saúde? Adianta ser linda e infeliz? Então, antes de colocar tudo em função da
aparência, reflita e busque levar uma vida mais leve, com menos cobranças, se
amando, se conhecendo. Seja feliz!
Lembrar que a vida não é uma competição também é muito
importante. Você não tem que ser mais bonita, mais magra, mais feliz que
ninguém. Você tem que tentar todos os dias ser melhor que você mesma, hoje ser
melhor que ontem. Não vá fazer loucuras em busca da barriga de fulana, das
pernas de beltrana. A sensação é que vivemos em um mundo em que as mulheres são
postas o tempo todo sob julgamento e classificadas por seu “tipo de beleza”,
“tipo de roupa”, “tipo de vida” e assim, acaba sendo normal acharmos que
precisamos ser mais bonitas que a amiga, mais arrumadas que a vizinha.
Se sentir bonita tem a a ver com segurança, respeito a si
própria, felicidade e autoaceitação. Se
gostar, mesmo conhecendo suas imperfeições, saber valorizar seus pontos fortes e ser fiel
a sua essência conta muito na hora de se sentir “poderosa” ou não. Então, se
olhe no espelho e faça o exercício de perceber quão especial é essa pessoa que
tá ali te olhando. Se veja com olhos de “melhor amiga” e seja legal em sua
avaliação!
Quando damos um basta nessas cobranças irreais podemos ter
objetivos tangíveis e assim ficamos realmente motivadas para melhorar nossa
saúde, nossa aparência e nosso corpo. Mas quando “competimos” com imagens
irreais de beleza estereotipada o tiro sai pela culatra e você, já que não terá
o corpo perfeito, afogará as mágoas na comida ou em hábitos que nos fazem mal.
Isso, muitas vezes, acontece por sermos imobilizadas pela busca de um ideal
que, para os nossos corpos, pode ser inatingível. Aí vem um ciclo: frustração,
angústia e desmotivação.
A perfeição é algo que não existe e a busca pelo corpo
perfeito pode ser uma busca vazia, irreal e até mesmo injusta.
Não seja a rã, personagem das narrativas acima, seja Você mesma
a sua melhor versão!
Prepare sua playlist, dance de frente pro espelho ou saia pra
uma caminhada; procure se interessar por outras coisas, leia bons livros, cerque-se de pessoas que te façam bem! E,
quando olhar-se no espelho, da próxima vez, descubra o brilho em seu olhar, o
brilho de uma mulher que se descobriu apaixonada por si mesma, em primeiro
lugar! Esse brilho surge quando você se aceita como é, quando você se
ama...quando você já sabe o que te faz mal, aquilo que você não quer mais e,
principalmente, quando você está focada em agradar a si mesma, antes de mais
nada.
*Texto dedicado especialmente às minhas inesquecíveis alunas!
Cidadãos de bem atacam Polenguinho confundindo homenagem ao
Pink Floyd com arco íris LGBT
Em mais uma prova de que a imbecilidade não tem mais freios
no Brasil, seguidores do MBL estão atacando o Polenguinho por fazer “apologia
da ideologia de gênero”.
Isso porque a marca homenageou no Facebook a
capa do disco do Pink Floyd, The Dark Side of The Moon, com o famoso prisma
(veja abaixo). Centenas de indigentes viram um arco íris LGBT. É sério.
Os autores da campanha tiveram que se explicar:
Disclaimer: Nossa equipe criativa teve como inspiração a
capa do álbum The Dark Side of The Moon, da banda Pink Floyd, para “brincar”
com o conceito de fominha, tão utilizado quando o assunto é Polenguinho.
Prezamos pela paz, pelo respeito e pela igualdade em nossa comunidade aqui.
Embora não tenhamos feito alusão ao movimento LGBT+, temos máximo respeito pela
causa. Contamos com todos que adoram o queijinho mais querido do Brasil desde
mil novecentos e bolinha para fomentar uma comunicação afetuosa e fluída por
aqui! Obrigado.
E você, tem contribuído em quê? Em vez de criticar/disseminar o que ouviu falar, o que leu em sites duvidosos, procura se interessar em se aprofundar em assuntos diversos? Em fazer outras leituras? Pesquisar fontes confiáveis? Ah, a propósito, exceto livros de autoajuda e a Bíblia, quantos livros você leu este ano? Que tal lermos mais e melhor?
Que tal, por exemplo, averiguar a informação do site acima? Que tal procurar saber quais são os sites confiáveis de notícias? Ou, ainda, para quem parou de estudar há muito tempo, que tal voltar a estudar e/ou se atualizar?
Você concorda com: "Pode fechar a tampa que o Brasil acabou"?
Sempre bom refletir:
O que você tem feito para fazer valer uma existência produtiva, consistente e harmônica neste planeta, neste país?
Voltei a estudar há pouco e tive o privilégio de estar em contato com assuntos diversos, com pessoas incríveis que vêm me fazendo entender muitas coisas...vários horizontes vêm se abrindo o que me vem permitindo não sucumbir à loucura coletiva e tentar separar o joio do trigo. Acho que fiz a escolha certa. Estar aposentada, com quase 60 anos, vivendo em uma sociedade tão conturbada, voltar à Universidade na área de Jornalismo (Divulgação Científica e Cultural), Linguística (Análise de Discurso) e Educação (Leitura e Ensino) tem me feito não sucumbir à insensatez. Quero ter um mínimo de lucidez e dignidade, atravessar o nevoeiro com categoria e destreza para não me perder em meio a mares revoltos. Quero envelhecer sem amargar, quero envelhecer sem proferir palavras duras, quero não perder a esperança, quero ter os olhos curiosos de criança, prezo lucidez por meio do conhecimento. Quero não enlouquecer em meio a uma sociedade tão conturbada que hoje presencio, com discursos atravessados de incoerências e impropérios. Tento entender o que há por trás de tudo isso, o porquê do Brasil estar imerso nesse caos, nesse dizer em "várias línguas" desconexas, de norte a sul.
(...)
Somos nós que fazemos o país. Precisamos ter acesso a leituras que permitam dialogar sem impor verdades, sem autoritarismo, sem impropérios, sem as mesmices. Sabemos que não há educação de qualidade para todos. Sabemos que há uma mídia manipuladora. Sabemos que o país está à beira do caos. Sabemos que a maioria não tem acesso à cultura, muitos nunca entraram em um museu e nem sabem o que é arte, no sentido de ser uma denúncia/contestação/reprodução de uma realidade, por mais esquisita/surreal que possa parecer, aos que nunca tiveram a informações que desvinculem de crenças arraigadas. Aos que se deixam levar pela hipocrisia, alienação e falso moralismo impostos,muitas vezes, pela religião, ou engessados por conceitos cristalizados que envenenam a mente e/ou o espírito. Aos que acham que as pessoas escolhem ser "gays" e que é coisa do "demônio", uma aberração e por aí vai... Sabemos que o Brasil é um país laico "pra inglês ver", há a liberdade de culto, porém sabemos que a "religião" vem ganhando espaço na bancada governista em prol de interesses escusos.
Em vez de culparmos os governantes, em vez de julgarmos implacavelmente a todos que têm um posicionamento/atuação diferente/inconsistente/incoerente de nós, temos como opção fazer uma revolução em prol do conhecimento-só ele nos permite libertar das amarras da escuridão/ignorância/alienação/estupidez... o conhecimento pode ser construído com leituras outras que se desvinculem de fatos noticiosos/sensacionalistas/deturpadores. A maioria não tem acesso a isso, aliás nem ao básico, para poder discernir o que há por trás de tudo o que ouvimos dizer. Há ainda aqueles que replicam informações-de sites duvidosos, de jornais comprometidos com a obscuridade- sem checá-las, que contribuem para o empobrecimento de leituras mais coerentes, que contribuem para o emburrecimento, para a obscuridade. Há aqueles que pararam no tempo, que vangloriam dos tempos de outrora. Repassam ideais ultrapassados, clamam por um messias que dará jeito neste nosso país...e arrancam likes/aplausos/endossados pela histeria coletiva, pela "unanimidade". Vale lembrar que não somos donos do facebook, desse espaço virtual, e nem tudo nos é conveniente disseminar. Há desabafos que devem ficar conosco. O que não nos edifica, não nos interessa propagar. Como diz o provérbio: "A boca fala do que o coração tá cheio" . Se nós não temos a acrescentar que possamos nos calar. Não podemos sucumbir à leviandade e nem a julgamentos que ferem a outros, que ajudem a disseminar um cenário de fim dos tempos.
Em meio a inúmeras leituras, para não ser "mais uma no rebanho", para tentar entender um pouco o que há por trás da disseminação do ódio, da intolerância e do medo a que temos presenciado nas plataformas digitais, nas redes sociais, seguem leituras que encontrei no EL PAÍS. Apenas para reflexão, uma possibilidade de entendimento outro...uma possível luz em meio a trevas. Não há pretensão de impor verdades, já me adianto, nem dizer aqui que essas leituras expressem "o certo e o errado", é apenas uma tentativa de olhar para outra direção! Vale lembrar ainda que nenhum órgão de imprensa/comunicação está desvinculado de um perfil mercadológico e também descomprometido/isento de posicionamentos que lhes convêm.
Há de se considerar sempre questões do tipo: "quem fala, de que posição fala, para quem fala, como fala e por que fala como fala".
As milícias em benefício próprio descobriram como
barganhar com a vida dos brasileiros e ganhar adeptos manipulando o medo e o
ódio
O fechamento
da mostra Queer Museum – Cartografia da Diferença na Arte Brasileira aponta
a crescente articulação entre setores da política tradicional e milícias como
o Movimento
Brasil Livre (MBL). Essa articulação está desenhando o Brasil deste
momento – e poderá ter muita influência na eleição de 2018.
Nesta coligação não formalizada, velhas táticas ganham aparência de novidade
pelo uso das redes sociais, com enorme eficiência de comunicação. É velho e
novo ao mesmo tempo. A vítima maior não é a arte ou a liberdade de expressão,
mas os mesmos de sempre: os mais frágeis, os primeiros a morrer.
A exposição era exibida desde 15 de
agosto, em Porto Alegre, no Santander Cultural. Contava com obras de artistas
brasileiros de diversas gerações, como Cândido Portinari, Alfredo Volpi, Ligia
Clark, Leonilson e Adriana Varejão. É justamente de Varejão uma das obras mais
atacadas: “Cenas do interior 2” tem quatro imagens de atos sexuais, incluindo
sexo com um animal. Outra obra demonizada foi a de Bia Leite, que expôs
desenhos baseados em frases e imagens do Tumblr “Criança Viada”, que reúne
fotos enviadas por internautas deles mesmos na infância. Liderados por milícias
como o MBL, pessoas começaram a ofender o público da mostra e a acusar os
artistas de promover a “pedofilia”, a “zoofilia” e a “sensualização precoce de
crianças”. As milícias também promoveram um boicote ao banco. O Santander
recuou, e a
exposição, que deveria se estender até outubro, foi encerrada.
O MBL, uma das milícias que lideraram os ataques à
exposição, foi um dos principais articuladores das manifestações contra o PT e
pelo impeachment
de Dilma Rousseff, que levaram às ruas milhões de brasileiros vestidos de
amarelo. Na ocasião, sua bandeira era a luta contra a “corrupção”. E propagavam
ideias “liberais”. Como bem apontou Pablo Ortellado, em sua coluna na Folha de S. Paulo, o MBL
descobriu que “as chamadas ‘guerras culturais’ eram um ótimo instrumento de
mobilização e que por meio do discurso punitivista e contrário aos movimentos
feminista, negro e LGBTT podiam atrair conservadores morais para a causa
liberal”. Passaram então a gritar contra as cotas raciais, o aumento do
encarceramento (num país em que a maioria dos presos é composta por negros) e
um projeto que espertamente foi batizado de “Escola
Sem Partido”.
Mas qual é o contexto e o que o MBL e outras milícias
semelhantes defendem? Se este tipo de grupo se formou erguendo a bandeira da
“anticorrupção” e não promove nenhuma manifestação nas ruas contra um presidente
denunciado duas vezes e um dos governos mais corruptos da história do
Brasil, é possível levantar a hipótese bastante óbvia de que a “corrupção”
nunca foi o alvo.
Quando são citados na imprensa, MBL e assemelhados são
tachados de “conservadores” e “liberais”. Isso os coloca sempre num polo contra
outro polo, o que é essencial para este tipo de milícia sobreviver, se replicar
e agir em rede. E dá a estas milícias uma consistência que não condiz com a
realidade de seu conteúdo. Liberais de fato jamais tentariam fechar uma mostra
de arte, para ficar apenas num exemplo. Nem faz sentido dizer que são
“conservadores” ou mesmo de “direita”. Eles são o que lhes for conveniente ser.
A dificuldade de nomear o que são, é importante perceber, os
favorece. E acabam se beneficiando de rótulos aos quais lhes interessa estar
associados num momento ou outro e que lhes emprestam um conteúdo que não
possuem, mas do qual sempre podem escapar quando lhes convêm. Neste sentido,
apesar de exibirem como imagem um corpo compacto, essas milícias são fluidas.
Embora ajam sobre os corpos, não há corpo algum. Isso lhes facilita se moverem,
por exemplo, da luta anticorrupção para as bandeiras morais, agora que não lhes
interessa mais derrubar o presidente.
A força de milícias como MBL é
sua capacidade de influenciar tanto eleitores quando odiadores, num momento
histórico em que estas duas identidades se confundem
O que se pode afirmar sobre milícias como o MBL é que elas
têm um projeto de poder – ou têm um poder que pode servir a determinados
projetos de poder. O poder destas milícias está em mostrar que são capazes de
se comunicar com as massas e, portanto, de influenciar tanto eleitores quando
odiadores, num momento histórico em que estas duas identidades se confundem. E
este é um enorme poder, que claramente tem sido colocado a serviço de políticos
e de partidos tradicionais. Além e principalmente, claro, de a serviço de seu
próprio benefício.
A descoberta de que temas “morais” são uma excelente moeda
de barganha não é prerrogativa do MBL e de seus assemelhados. Esta moeda sempre
esteve em circulação. Na Nova República, que se seguiu à ditadura
civil-militar (1964-1985), ela esteve na primeira eleição presidencial
da redemocratização, quando Fernando Collor de Mello, que depois se tornaria o
primeiro presidente a sofrer impeachment, usou fartamente contra Lula o fato de
que ele tinha uma filha de uma relação anterior ao seu casamento com Marisa
Letícia e que teria sugerido um aborto à então namorada.
Mas o marco fundador do que vivemos hoje pode ser localizado
bem mais tarde, na eleição de 2010. Naquele momento, ao perceber o potencial
eleitoral do crescimento dos evangélicos no Brasil, em especial dos
neopentecostais, alguns oportunistas perceberam que jogar o tema do aborto no
palanque poderia ser conveniente. Tanto para conquistar o voto religioso quanto
para derrubar opositores.
No final do primeiro turno de 2010, a internet e as ruas
foram tomadas por uma campanha anônima, na qual se afirmava que Dilma Rousseff
era “abortista” e “assassina de fetos”. Rousseff começou a perder votos entre
os evangélicos e parte dos bispos e padres católicos exortou os fiéis a não
votar nela. José Serra (PSDB) empenhou-se em tirar proveito do ataque vindo das
catacumbas, determinando o rumo da campanha dali em diante. E Rousseff correu a
buscar o apoio de religiosos, acabando por escrever uma carta declarando-se
“pessoalmente contra o aborto”. Nela, comprometia-se, em caso de vencer a
eleição, a não propor nenhuma medida para alterar a legislação sobre o tema.
Quem peregrinou por templos evangélicos defendendo Rousseff
e garantindo que ela era contra o aborto foi justamente Eduardo Cunha
(PMDB), que depois lideraria o processo de impeachment da presidente eleita
e hoje está preso. Naquele momento, o debate político, que nas eleições
anteriores tinha se mantido dentro de certos parâmetros éticos, foi rebaixado.
E os oportunistas religiosos e não religiosos farejaram que estes eram o temas
com que poderiam garantir vantagens para si mesmos e para seus grupos,
traficando-os no balcão de negócios de Brasília. Quando os limites são
superados, mesmo aqueles que promoveram a sua superação não são capazes de
prever até onde isso pode chegar. Desde então, o corpo de mulheres e de gays,
lésbicas, travestis e transexuais tornou-se uma das principais moedas de
barganha eleitoral.
As milícias rapidamente compreenderam esse potencial. Seu
trunfo é comprovar que podem levar as massas para onde quiserem, o que as torna
valiosas para políticos com grandes ambições eleitorais e valiosas para seus líderes
com ambições eleitorais. Mas só podem levá-las porque se comunicam com uma
população que se sente cada vez mais insegura e desamparada e que é a primeira
a sofrer com a crise econômica e a crescente dureza dos dias sem saúde, sem
escola, sem serviços básicos, enquanto assiste a um noticiário que é quase todo
ele sobre malas de dinheiro da corrupção. Uma população que há anos tem sido
treinada por programas policialescos/sensacionalistas na TV que atribuem todas
as dificuldades a facínoras à solta, adestrando-a a ver as mazelas da vida
cotidiana como culpa de alguém que pode e deve ser eliminado – e não a uma
estrutura mais complexa que a mantém cimentada no lugar dos explorados.
As milícias encontraram o canal
de comunicação com o medo e com o ódio de uma população acuada e, assim, o
inimigo pode ser mudado conforme a conveniência
As milícias compreendem o potencial desse medo e desse ódio.
E sabem se comunicar com esse medo e esse ódio. Encontraram o canal, o ponto a
ser tocado. Encontrado o canal, o inimigo pode ser mudado conforme a
conveniência. Se agora não interessa derrubar o presidente denunciado por
corrupção, há que se encontrar um outro alvo para canalizar esse ódio e esse
medo e manter o número de seguidores cativos e, de preferência, crescendo,
atingindo públicos mais amplos. E, principalmente, manter o valor de mercado
das milícias em alta, em especial às vésperas de uma campanha eleitoral das
mais imprevisíveis.
Assim, testemunhamos um fenômeno de ilusão na semana
passada. O problema do Brasil já não era a desigualdade nem a pobreza que
voltou a crescer. Nem mesmo o desemprego. Nem a crescente violência no campo e
nas periferias promovidas em grande parte pelas próprias forças de segurança do
Estado a serviço de grupos no poder. Nem o desinvestimento na saúde e na
educação. Nem a destruição da floresta amazônica e o ataque aos povos indígenas
e quilombolas pelos chamados “ruralistas”. Nem projetos que mexem em direitos
conquistados na área trabalhista e da previdência sendo levados adiante sem
debate por um governo corrupto. Não.
De repente, na semana passada, o problema do Brasil
tornou-se, para milhões de brasileiros, a certeza de que o país é dominado por
pedófilos e defensores do sexo com animais. Agora, são artistas que devem ser
perseguidos, presos e até, como se viu em algumas manifestações nas redes
sociais, mortos. E não só artistas, mas também quadros e peças de teatro. O
problema do Brasil é que pedófilos querem corromper as crianças e transgêneros
querem destruir as famílias.
Assim como pouco antes o problema do Brasil era o fato de os
negros, maioria da população, passarem a ter o acesso à universidade ampliado
por ações afirmativas. E o problema do Brasil seria uma suposta doutrinação
partidária nas escolas – e não a falta de investimento em educação e o salário
de fome dos professores e as escolas caindo aos pedaços. Com esse truque de
ilusionismo coletivo se desvia da necessidade de mudar algo muito mais
estrutural em um dos países mais desiguais do mundo.
O prejuízo causado pelo ataque à
exposição é menos a questão da liberdade de expressão e mais o apagamento dos
massacres reais
O prejuízo causado pelo ataque à exposição de arte é menos a
questão da censura e do cerceamento da liberdade de expressão, como foi
colocado por parte dos que reagiram contra o fechamento da mostra, e mais o
apagamento que ataques como este ajudam a produzir e a perpetuar. Como o número
assombroso de homossexuais assassinados e de estupros de mulheres no país. Para
lembrar: segundo o Grupo Gay da Bahia, que documenta a violência produzida por
homofobia, só neste ano 251 pessoas foram assassinadas por sua orientação
sexual. No ano passado, ocorreram 343 assassinatos. Os crimes por homofobia vêm
crescendo: entre 2005 e 2014 foram 2181 homicídios e, apenas entre 2015 e 2017,
já são 3093. Em 2014, metade dos casos registrados de transfobia letal no mundo
ocorreu no Brasil. Este massacre, este que é real, este que se dá sobre os
corpos de pessoas, este não produz nenhum protesto ou comoção.
A cada hora, no Brasil, cinco mulheres são estupradas. Isso
significa que, enquanto você lê este texto, pelo menos uma mulher já sofreu ou
está sofrendo um estupro. E isso são apenas os casos documentados. A
estimativa, segundo estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada),
é de que apenas 10% dos estupros são registrados pela polícia. Assim, o número
verdadeiro seria de mais de meio milhão de estupros por ano no Brasil. Este
massacre, este que é real, este que se dá sobre os corpos de pessoas, este não
produz comoção no país.
Ao denunciar a arte e os artistas
como “pedófilos”, o que se produz é o apagamento de um fato bastante incômodo:
o de que a maioria das crianças violadas é violada por familiares e conhecidos
Ao denunciar a arte e os artistas como “pedófilos”, o que se
produz é o apagamento de um fato bastante incômodo: o de que a maioria das
crianças violadas é violada por familiares e conhecidos. Pelo menos um quarto
dos casos de violação de crianças tem como autor pais e padrastos. Ocorre,
portanto, naquilo que a bancada da Bíblia tenta vender como a única família
possível, formada por um homem e por uma mulher.
Essa mesma estratégia faz com que a guerra contra as cotas
raciais torne ainda mais invisível o horror concreto: o genocídio da juventude
negra e pobre. E o “Escola Sem Partido” desloca o problema real, o
desinvestimento na escola pública, justamente a que abriga os mais pobres, para
um falso problema, a suposta doutrinação política. E assim, com os males reais
sendo invisibilizados e apagados, tudo continua como está. E aqueles que gritam
seguem cimentados na mesma posição na pirâmide social.
Para que as milícias sigam
arregimentando odiadores é preciso que a compreensão do mundo seja cada vez
mais literalizada, por isso é tão importante atingir a cultura, aquela que
amplia as subjetividades
O fato de que as mais recentes ofensivas sejam contra a
cultura não é um dado qualquer. É também por movimentos culturais surgidos nas
periferias do país e apoiados por programas públicos, especialmente nas gestões
de Gilberto Gil e de Juca Ferreira, que uma juventude politizada fortaleceu sua
atuação. É também nas artes e na literatura que se encontra a maior
possibilidade de ampliação das subjetividades. E é a subjetividade que nos
ajuda a compreender o mundo em que vivemos para além do que nos é dado para
ver.
E isso também não é um detalhe: para as milícias seguirem
arregimentando eleitores e odiadores é preciso que a compreensão do mundo siga
literalizada – ou seja, sem a possibilidade de recursos como metáforas, ironias
e invenções de linguagem. Nesse ritmo, daqui a pouco, quando alguém disser
coisas como “boca da noite”, um outro vai rebater com a afirmação de que “noite
não tem boca”. É também isso que aconteceu quando muitos olharam para a
exposição e só literalizaram o que viram lá, bloqueados em qualquer outra
possibilidade de entrar em contato com seus próprios sentidos e realidades
inconscientes.
Se os programas
policialescos/sensacionalistas colaboraram para a compreensão unidimensional do
Brasil, as novas igrejas evangélicas cumpriram o papel de literalizar a
linguagem de parte dos brasileiros
Se os programas policialescos/sensacionalistas de TV
desempenharam e desempenham um papel fundamental para a compreensão simplista
do Brasil e dos problemas do Brasil, ao eleger um “culpado” individualizado,
sem tocar em questões de desigualdade racial e social e questões de acesso a
direitos básicos como a própria justiça, as igrejas evangélicas neopentecostais
cumpriram e cumprem o papel de literalizar a linguagem. Há gerações sendo
formadas na interpretação literal da Bíblia, para muitos o único livro que
leem. O que milícias como MBL perceberam é a possibilidade de manipular essa
mesma matéria-prima, arregimentando massas já bem treinadas em enxergar
inimigos e literalizar a linguagem.
Há um ponto nesse episódio que é revelador de onde milícias
como MBL querem chegar. É o ponto de encaixe. As milícias sempre vociferaram
contra os “vândalos” e “desordeiros” que quebravam fachadas de bancos em
protestos contrários à sua bandeira de ocasião. Desta vez, aparentemente
investiram contra o Santander, um dos maiores bancos do mundo, ao pregar um
boicote. Mas não era contra o Santander, e sim contra o fato de uma exposição
que afirmaram ser de “apologia à pedofilia e à zoofilia” ter sido financiada
por dinheiro de renúncia fiscal via lei Rouanet. O verdadeiro alvo do ataque é
o investimento de dinheiro público em cultura. Se a lei Rouanet tem problemas e
pode ser aprimorada, ela significou um investimento importante numa área sempre
relegada e que tem sofrido enormemente no atual governo.
Neste ponto, vale a pena perceber quais são os candidatos
que apoiam e são apoiados por milícias como o MBL. Em São Paulo, João Doria Jr
(PSDB), o político cuja política é se dizer não político. Volta e meia são
postadas nos sites das milícias as fotos de Doria serelepando pelo Brasil em
seu jatinho particular. Nestes posts, é enaltecido o fato de que ele não gasta
dinheiro público para se locomover “a serviço de São Paulo”.
Os milhares que apertam a tecla de “curtir” esse tipo de
mensagem podem não perceber que se propagam ali duas ideias que prejudicam a
maioria da população: 1) que só ricos podem ser eleitos; 2) que o investimento
de dinheiro público é ruim para o Brasil, quando justamente é fundamental para
combater a desigualdade e garantir o acesso a direitos básicos que se invista
em saúde, educação e transporte público, entre outros temas prioritários. A
ideia de que todo investimento público é suspeito ou será desviado para a
corrupção é bastante conveniente para políticos e candidatos da política
tradicional a serviço do mercado. Quanto menos o Estado atuar e investir em
áreas estratégicas para a vida cotidiana e a qualificação da população, há mais
espaço para negócios que só crescem pela sua ausência.
Outro exemplo é o prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan
Jr, também do PSDB, notório apoiador e apoiado pelo MBL. A nota do Santander
Brasil foi publicada na página oficial do prefeito, com a afirmação de que “a
exposição mostrava imagens de pedofilia e zoofilia”. Horas depois, foi apagada.
A milícia desempenhou um papel importante em sua vitória na última eleição. E é
para a eleição de 2018 que o MBL vem ensaiando lances cada vez mais ousados,
como o da exposição, que pode ter levado alguns de seus apoiadores e apoiados a
um afastamento temporário. Mas o que importa é e sempre será o poder das milícias
de influenciar eleitores/odiadores.
Um grita: “Pedófilo!”. O outro
responde: “Nazista!”. O que muda?
De nada adianta chamar as pessoas que se manifestaram contra
a mostra de “ignorantes”, “fascistas” e “nazistas”. É também preciso escutá-los
para além do óbvio. E para além do que é dado a ver. Do contrário, aqueles que
“entendem a arte” se colocam no melhor lugar para as milícias, o de um polo
oposto que iguala a todos no patamar do rebaixamento e produz o apagamento das
diferenças. Um grita: “Pedófilo!”. O outro responde: “Nazista!”. O que muda? Se
estes são “os que entendem”, há que usar esse entendimento para não fazer o
jogo das milícias.
Também não adianta gritar que as pessoas não compreendem o
que é arte. Se parte significativa da população não teve e não tem acesso à
arte é também porque os privilégios se mantêm intactos neste país graças a
muita gente que entende de arte. E nada, muito menos a arte, deve estar
protegida do debate. O ataque é abusivo. O debate é necessário.
Há diferenças entre as milícias
que lideram os ataques e aqueles que elas conseguem arregimentar para os
ataques: é essencial compreender essas diferenças e aprender a dialogar com
elas
Há diferenças entre as milícias que lideram os ataques e
aqueles que elas conseguem arregimentar para os ataques. É importante
compreender essas diferenças e aprender a dialogar com elas. Durante a semana
passada, por exemplo, evangélicos replicaram mensagens enviadas por seus
pastores contra a mostra e a “apologia à pedofilia”. Mas algumas destas
pessoas, com quem conversei, estavam replicando a mensagem ao mesmo tempo que
participavam ativamente de debates públicos sobre direitos humanos e maior
investimento no SUS. Estas, por exemplo, são pessoas com quem é possível conversar.
E este é apenas um exemplo. É um erro confundir os líderes das milícias com
aqueles que ocasionalmente lideram. Assim como é um erro colocar o complexo
mundo evangélico brasileiro no mesmo escaninho.
A crise, como não custa repetir, é também de palavra. Ou
principalmente de palavra. E o
esvaziamento das palavras é algo poderoso. Como o “livre” do Movimento
Brasil Livre (MBL). Ou como “Escola Sem Partido”, um projeto que toma vários
partidos. Mas as palavras que os confrontam já se esvaziaram. Como “fascista”,
que já pouco ou nada diz. E agora também “nazista” já se desidrata. Para uma
parte significativa da população, os conceitos de “direita” e “esquerda” pouco
significam. E “pedófilo” agora pode ser alguém que pintou um quadro. Assim
como as
gentes na internet vão virando fantasmagorias, as palavras também.
A literalização da linguagem é apenas uma das faces da crise
da palavra. Os brasileiros sempre tiveram uma linguagem riquíssima, complexa,
de invenção, povoada por subjetividades. Guimarães Rosa, um dos maiores ícones
da literatura brasileira, bebeu nesta fonte – e não o contrário. Alguns dos
melhores momentos da música brasileira foram paridos por essa inventividade
ousada. É o teatro quem tem melhor dado conta do atual momento do Brasil.
É nesta resistência que é preciso apostar. E para isso é
preciso investir muito no fortalecimento dos movimentos culturais. E é preciso
fazer a disputa também ou principalmente pela linguagem. Quando tantos gritam
“pedófilo” é preciso escutar e responder de forma que o diálogo seja possível.
Quem ganha com o esvaziamento das palavras já sabemos. Quem perde nem sempre
percebe que perde.
Aqueles que investem no terror sabem apenas como começa. Mas
como ignoram a história e apostam na desmemória, não aprenderam uma lição
básica: quando se manipula medos e ódios, o controle é apenas uma ilusão. Nunca
se sabe até onde pode chegar nem como acaba.
Eliane
Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de
não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O
Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do
romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/
Facebook:@brumelianebrum
A associação familiar para onde vai o
dinheiro do MBL
Renan Santos, um dos líderes do grupo, e seus irmãos são os
associados da entidade que controla os recursos e as doações ao movimento.
Família Santos é ré em 125 processos
Kim Kataguiri, Renan Santos e outros membros MBL protestam a favor do impeachment de Dilma, em março de 2016.FOLHAPRESS
O Movimento Brasil Livre (MBL), que surgiu em 2014
carregando a bandeira do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e do
combate intransigente à corrupção, se autodenomina uma entidade sem fins
lucrativos, segundo consta em sua página no Facebook. Porém, há um lado
nebuloso sobre como se organiza e se mantém financeiramente este movimento, que
conta com 2,5 milhões de fãs em seu perfil na rede social. Todos os recursos
que recebe por meio de doações, vendas de produtos e filiações são destinados a
uma "associação privada" — como consta no site da Receita Federal — ,
chamada Movimento Renovação Liberal (MRL), registrada em nome de quatro
pessoas, sendo três deles irmãos de uma mesma família: Alexandre, Stephanie e
Renan Santos. Este último é um dos coordenadores nacionais do MBL e um dos
rostos mais conhecidos do grupo.
A família Santos responde atualmente a 125 processos na
Justiça, relativos a negócios que tiveram antes da criação do MRL. O EL PAÍS
teve acesso a estes processos. A maioria é relativa à falta de pagamento de
dívidas líquidas e certas, débitos fiscais, fraudes em execuções processuais e
reclamações trabalhistas. Juntos, acumulam uma cobrança da ordem de 20 milhões
de reais, valor que cresce a cada dia em virtude de juros, multas e cobranças
de pagamentos atrasados.
Três membros desta mesma família, além de uma quarta pessoa,
aparecem como únicos associados da Renovação Liberal, a entidade privada
"sem fins econômicos e lucrativos" que recebe o dinheiro do MBL. Seu
estatuto, registrado em cartório em julho de 2014, diz que se trata de uma
Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). De acordo com a
legislação brasileira, doadores de uma OSCIP podem descontar do Imposto de
Renda as colaborações feitas a uma entidade como o MRL.
Até hoje, o Movimento Renovação Liberal não consta no
cadastro nacional de OSCIP disponibilizado pelo Ministério da Justiça.
Consultando o CNPJ do Renovação Liberal (22779685/0001-59) no site da Receita
Federal, o que se encontra é uma associação privada, criada em março de 2015,
cuja atividade principal é “serviços de feiras, congressos, exposições e
festas”.
Além disso, apenas Stephanie Liporacci Ferreira dos Santos,
irmã de Renan Santos, aparece na Receita Federal como presidenta da entidade.
Ou seja, o que aparece na Receita não corresponde ao quadro societário que
aparece no estatuto da associação. O endereço do Renovação Liberal fica,
atualmente, num bairro nobre da zona sul de São Paulo, no mesmo imóvel onde
está a sede nacional do MBL. De acordo com fotos e publicações em suas páginas
de Facebook, Stephanie mora na Alemanha, onde foi visitada por seus pais e
irmãos em julho deste ano.
Segundo Cecília Asperti, advogada e professora de Direito da
Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), o mero fato de que o estatuto social diga que
a entidade se trata de uma OSCIP não significa que ela seja uma. “Somente podem
qualificar-se como tal as pessoas jurídicas (de direito privado sem fins
lucrativos) que tenham sido constituídas e que se encontram em regular
funcionamento há, no mínimo, três anos”, afirma Asperti. “Para tanto, é
necessário fazer um requerimento perante o Ministério da Justiça observando-se
os critérios estabelecidos em lei. Cabe, então, à pasta federal julgar se a
associação enquadra-se ou não nos requisitos”, explica a advogada.
O dinheiro doado ou repassado ao MBL é canalizado para o
Movimento Renovação Liberal da seguinte maneira: quando alguém doa (e se filia)
ao MBL, paga uma taxa por meio de um serviço de internet (PayPal). O dinheiro,
então, é direcionado ao CNPJ do Renovação Liberal. Também a venda de artigos
vinculados à marca, como bonecos pixulecos, canecas e camisetas, tem os
recursos direcionados à entidade de Renan e seus irmãos, como constatou este
jornal ao fazer compras na página do movimento.
Imagem de uma compra feita na loja online do MBL. No
destaque em vermelho, na parte inferior, o CNPJ do MRL.
Questionado pelo EL PAÍS, o MBL diz que "não se deve
confundir" o Renovação Liberal com o grupo. "O MBL é uma associação
de fato, que congrega milhares de indivíduos de diversas localidades do país
identificados com causas de natureza política, social e econômica. Para não
perder sua essência de movimento cívico compreendido como reunião espontânea de
pessoas, optou-se por essa formatação. O Movimento Renovação Liberal presta
apoio formal ao MBL, por exemplo em relação à realização de eventos",
disse nesta sexta-feira, por e-mail. [Veja as respostas na íntegra no box abaixo].
Ausência de prestação de contas
Tanto o MBL quanto a associação Renovação Liberal nunca
apresentaram ao público uma prestação de contas. O EL PAÍS questionou o grupo
sobre sua arrecadação e recebeu a seguinte resposta: "O MBL é o movimento
político mais perseguido do Brasil. E, portanto, como entidade privada, não
tornamos público o balanço financeiro, em respeito à privacidade e integridade
de nossos colaboradores, membros e doadores". Também não consta no
cartório em que a entidade está registrada atas de assembleias gerais ou
registro da instituição de um conselho fiscal, contrariando o que está previsto
no próprio estatuto do Renovação Liberal — e o que, em tese, prevê a natureza
de uma OSCIP.
Os chamados coordenadores nacionais do MBL já foram
impelidos em outras ocasiões a apresentar suas contas publicamente por órgãos
de imprensa, adversários políticos, simpatizantes e até partidos aliados, mas
nunca o fizeram. No dia 22 do mês passado, por exemplo, a Juventude do PSDB-SP
— importantes dirigentes deste partido contam com o apoio declarado do MBL para
as eleições de 2018 —, divulgou uma nota em que critica a falta de
transparência financeira do movimento: “Hoje, o MBL tem sua agenda esgotada, e
não se observa mais utilidade a esta organização que, aliás, nunca deixou clara
sua origem, seu funcionamento e, principalmente, seu método de financiamento.
(...) A Juventude do PSDB do Estado de São Paulo aproveita, ainda, para
convidar o Movimento Brasil Livre ao debate honesto e transparente sobre o seu
modo de financiamento, desafiando-o publicamente a disponibilizar prestação de
contas periódica do movimento”.
A nota acima foi divulgada após a notícia de que o MBL e
parlamentares jovens do PSDB estavam ensaiando uma aliança para as eleições de
2018. O EL PAÍS entrou em contato com Juventude paulista do PSDB, que, por meio
de sua assessoria de comunicação, confirmou que a nota publicada na imprensa
representa o posicionamento do órgão estadual até hoje. Já André Morais,
presidente da Juventude Nacional do PSDB, disse à reportagem que respeita a
posição da ala paulista da entidade, mas que ela não representa a opinião do
órgão nacional. “Temos mais semelhanças do que diferenças com o MBL”, afirmou
Morais.
“Agentes da CIA”
A falta de transparência para divulgar suas contas já gerou
uma série de teorias sobre quem patrocina o MBL. De testas de ferro da CIA a
fantoches dos Irmãos Koch, um grupo empresarial norte-americano que apoiou o
presidente Donald Trump nas últimas eleições. Os jovens do grupo não perderam
tempo de capitalizar sobre as teses que os cercam para atrair doadores. Os
interessados em colaborar com o MBL podem se filiar ao movimento de acordo com
diversas escalas de valores, que variam de 30 reais a 10.000 reais. Pelo valor
mais baixo, o doador se registra na categoria chamada Agente da CIA. Segundo
informa a página cadastral, este plano dá direito a acesso a fóruns de debates,
votações em questões internas e participação em sessões de videoconferências.
Por 100 reais, é possível tornar-se um doador Irmãos Koch.
Há ainda outras seis categorias, com nomes como Exterminador
de Pelegos, Imperialista Yankee e Privatiza Tudo. A filiação premium chama-se I
am the 1%e custa 10.000 por mês, teoricamente dando direito à participação em
congressos, votações e jantares. Apesar desse controle no número de filiações,
o MBL disse o seguinte para o EL PAÍS: "Estamos em 24 Estados da federação
e em centenas de municípios. Cada núcleo é independente, não sendo possível
afirmar quantos somos".
Além disso, os colaboradores que se filiam não possuem
qualquer direito sobre a entidade que controla as finanças do movimento.
Conforme consta no estatuto da Renovação Liberal, a entidade possui apenas
quatro associados, e somente eles têm direito a voto, cadeiras em assembleias
gerais, no conselho consultivo e no conselho fiscal. O Artigo 15 do estatuto
(na imagem) prevê que apenas a assembleia geral poderá aprovar a entrada de
novos membros. Mas isso jamais foi feito desde que a associação foi fundada,
conforme mostram os documentos referentes à entidade, entabulados no 8º
Cartório de Registro Civil de Pessoa Jurídica de São Paulo.
Aqueles que são chamados de coordenadores nacionais do MBL,
como Kim Kataguiri, Fernando Holiday e o próprio Renan Santos, não foram
eleitos por ninguém e jamais poderão ser substituídos em eventual votação dos
que supostamente se filiam ao movimento. Tampouco poderão os doadores do MBL
votar ou decidir sobre qualquer destinação do dinheiro que o movimento acumula,
nem mesmo aprovar suas contas. Tudo isso cabe apenas aos irmãos Santos e ao
quarto associado, Marcelo Carratú Vercelino, empresário morador de Vinhedo, no
interior paulista.
Problemas na Justiça
Os irmãos Santos e seus pais são alvos de pelo menos 125
processos na Justiça brasileira. Somente em nome de Renan Santos e das empresas
familiares de que é sócio, há 16 ações cíveis e mais 45 processos trabalhistas.
Ele nega ter agido de má fé em qualquer um desses casos, embora admita as
dívidas, fruto, segundo ele, das "dificuldades de ser empresário no Brasil",
conforme afirmou ao portal UOL. Em mais da metade das ações judiciais a que
respondem, o tempo para Renan e sua família se defender já passou, tornando a
dívida líquida, certa e exequível. Esses processos correram à revelia, o que
quer dizer que os acusados sequer se deram ao trabalho de defender-se na
Justiça. As cobranças estão sendo realizadas pelos tribunais, mas não têm tido
resultado, visto que oficiais de Justiça não encontram valores nem nas contas
das empresas, nem nas de seus proprietários. Há casos de oficiais de Justiça
que foram cobrar Renan e seus irmãos em endereços anunciados como sedes das
empresas, mas não encontraram ninguém.
AS RESPOSTAS DO MBL AO EL PAÍS
Pergunta. Qual a relação entre o MBL e a empresa Movimento
Renovação Liberal?
Resposta. Antes de tudo há um erro na pergunta: O Movimento
Renovação Liberal não é uma empresa, mas sim uma Associação Civil sem fins
lucrativos. A relação entre o Movimento Renovação Liberal e o Movimento Brasil
Livre precisa ser compreendida a partir da natureza jurídica de cada um deles.
Não se deve confundir um com o outro. O MBL é uma associação de fato, que
congrega milhares de indivíduos de diversas localidades do país identificados
com causas de natureza política, social e econômica. Para não perder sua
essência de movimento cívico compreendido como reunião espontânea de pessoas,
optou-se por essa formatação. O Movimento Renovação Liberal presta apoio formal
ao MBL, por exemplo em relação à realização de eventos, tendo inclusive
registrado perante o INPI e cedido o uso da marca MBL, evitando-se que pessoas
de má-fé pudessem se aproveitar de todo trabalho realizado por indivíduos que
lideram o movimento. Atualmente, os ataques sofridos pelo MBL apenas confirmam
o acerto da medida.
P. Quanto o MBL já arrecadou neste ano com a filiação de
novos membros e venda de produtos pelo site? E desde sua fundação?
R. O MBL é o movimento político mais perseguido do Brasil.
E, portanto, como entidade privada, não tornamos público o balanço financeiro,
em respeito à privacidade e integridade de nossos colaboradores, membros e
doadores.
P. Quantos membros o MBL possui em todo o Brasil? E só em
SP?
R. Estamos em 24 Estados da federação e em centenas de
municípios. Cada núcleo é independente, não sendo possível afirmar quantos
somos.
P. Vocês estão disputando na Justiça a propriedade do nome e
da logomarca do MBL. Por que não conseguiram a propriedade antes?
R. Essa questão é risível. A marca está devidamente
registrada e não há qualquer questionamento judicial nesse sentido. MBL tem
cara e sempre teve seus líderes, tais como Kim, Holiday e Renan. O resto é papo
de oportunista.
FE DE ERRORES
Em uma primeira versão desta reportagem, o EL PAÍS disse que
uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) deve prestar
contas publicamente todos os anos e ser avalizada pelo Ministério da Justiça.
Estas exigências, porém, não constam mais no ordenamento jurídico brasileiro. O
texto foi corrigido.
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Pra tentar entender o contexto de uma das exposições no MAM, que vem causando polêmica: